A decisão dos EUA de proibir a Universidade Harvard de matricular estudantes estrangeiros foi noticiada, em grande parte, como resposta aos protestos pró-Palestina que tomaram os campi do país no ano passado. A narrativa dominante foi a de uma retaliação política contra instituições que se recusaram a punir manifestantes ou a reprimir críticas a Israel.
No entanto, um elemento-chave da justificativa oficial passou quase despercebido: a secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, afirmou que Harvard estaria envolvida em colaboração com o Partido Comunista. Entre as acusações, está a de que a universidade teria treinado membros de uma organização paramilitar chinesa, mesmo após ela ter sido alvo de sanções dos EUA.
Não há evidências públicas que sustentem tal acusação, tampouco houve cobrança por parte da imprensa por sua fundamentação. A gravidade da insinuação, no entanto, exige atenção por se tratar de mais um capítulo na politização do ensino superior americano sob o pretexto da segurança nacional.
A associação de universidades com “inimigos externos” não é nova. Durante o primeiro mandato, Donald Trump promoveu uma ofensiva sistemática contra a presença de estudantes chineses no país. Em 2020, revogou mais de mil vistos de pós-graduandos sob o argumento de que estariam ligados a universidades militares da China.
No mesmo período, o Departamento de Justiça lançou a China Initiative, voltada a investigar supostos casos de espionagem acadêmica. A iniciativa foi encerrada dois anos depois, após críticas de que promovia perfilamento racial e minava a liberdade acadêmica. Menos de um terço dos casos investigados resultou em condenações.
Mas as ações tiveram consequências profundas. Estudantes passaram a se autocensurar, pesquisadores com sobrenomes chineses enfrentaram obstáculos para obter financiamento, renovar vistos ou participar de conferências. Reitores alertaram para a criação de um “efeito inibidor” sobre a produção científica, e muitos talentos deixaram os EUA ou passaram a evitar o país como destino de estudos.
O episódio atual retoma essa lógica. Ao acusar a mais prestigiada universidade americana de colaborar com o PC Chinês, o governo sinaliza que nem mesmo instituições de elite estão a salvo da guerra cultural. O que antes se concentrava em indivíduos agora mira diretamente a autonomia universitária.
Para os pais chineses a mensagem é clara: os EUA se tornaram imprevisíveis. A matrícula de estudantes chineses caiu mais de 20% desde 2020, após décadas de crescimento contínuo, e a Índia já ultrapassou a China como principal origem de estudantes internacionais. Paralelamente, países como Reino Unido, Austrália e Singapura passaram a captar essa demanda, oferecendo admissão facilitada e ambiente institucional estável.
A China também tem colhido frutos. Ao intensificar a repatriação de talentos, atrai cientistas qualificados que antes eram formados e retidos nos EUA. Esse movimento é particularmente sensível em áreas estratégicas como inteligência artificial, biotecnologia e engenharia. Ao desencorajar esses profissionais, os EUA não apenas minam sua própria capacidade de inovação, como reforçam a ascensão tecnológica chinesa.
Harvard tornou-se o símbolo de uma cruzada que transforma salas de aula em arenas ideológicas. O custo vai além das fronteiras do campus: o país que por décadas foi sinônimo de liberdade acadêmica e excelência científica agora desperdiça parte do capital humano que o sustentava.
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